terça-feira, 31 de outubro de 2017

A MENTIRA - Por Eça de Queirós

            Não era o correio. Era apenas um bilhete que Batista trazia numa salva; e vinha tão perturbado que anunciou:
               - Um sujeito, ali fora, na ante-câmara, numa carruagem, à espera...
          Carlos olhou o bilhete, empalideceu terrivelmente. E ficou a revirá-lo, lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silêncio, atirou-o ao Ega por cima da mesa.
                - Caramba! murmurou Ega, assombrado.
                Era Castro Gomes!
                Bruscamente Carlos erguera-se, decidido. 
                - Manda entrar... Para o salão grande! 
          Batista apontou para o jaquetão de flanela com o qual Carlos tinha almoçado,e perguntou baixo se S. Exa. queria uma sobrecasaca.
                - Traze.
                 Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante ansiosamente. 
                - Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega. 
                Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete; o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes; por baixo tinha escrito a lápis "Hotel Bragança..." Batista voltava com a sobrecasaca; Carlos, abotoando-a de vagar, saiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficara de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo. 
              No salão nobre, forrado de brocados cor de musgo de outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado à borda do sofá, a esplêndida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bela e forte no seu vestido de veludo escarlate de caçadora inglesa.  Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéu branco na mão, sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquele soberbo Constable...  Com um gesto rígido, Carlos, muito pálido, indicou-lhe o sofá. Saudando risonho, Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa, trazia um botão de rosa; os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabelos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de secura, de fadiga. 
               - Eu possuo também em Paris um Constable muito chic, disse ele, sem embaraço, num tom arrastado, cheio de rir, que o sotaque brasileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena paisagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia dá muito tom a um galeria. É necessário tê-lo.
                Carlos, defronte, numa cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a imobilidade de um mármore. É, perante aquele modo afável, uma ideia ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimível chama de cólera. Carlos Gomes de certo não sabia nada! Chegara, desembarcara, correra aos Olivais, dormia nos Olivais! Era o marido, era novo, tivera-a já nos braços - a ela! E agora ali estava, tranquilo, de flor ao peito, falando de Constable! 
                 O único desejo de Carlos, nesse instante, era que aquele homem o insultasse. 
                 Noentanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...
                 - O motivo porém que me trás tão urgente, que cheguei esta manhã, às dez horas, do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui... E esta mesma noite, se puder, parto para Madri. 
                 Fez-se um  alívio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda, aqueles secos lábios não a tinham tocado! E saiu enfim da sua rigidez de mármore, teve um movimento atento, aproximando de leve a cadeira. 
Castro Gomes, no entanto, tendo pousado o chapéu, tirara do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monograma de ouro; e vagaroso, procurava entre os papéis uma carta... Depois, com ela na mão, muito tranquilamente: 
                - Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escrito anônimo... Mas não creia V. Exa. que foi ele que me levou a atravessar à pressa o Atlântico. Seria o maior dos ridículos... E desejo também afirmar-lhe que todo o conteúdo dele me deixou perfeitamente indiferente... Aqui o tem. Quer V. Exa. lê-lo, ou quer que eu leia? 
                 Carlos murmurou com um esforço: 
                 - Leia V. Exa. 
                 Castro Gomes desdobrou o papel e revirou-o um instante entre os dedos. 
           - Como V. Exa vê, é carta anônima em todo o seu horror; papel de mercearia, pautadinho de azul; caligrafia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui está com ele se exprime:
               "Um homem que teve a honra de apertar a mão de V. Exa." Eu dispensava a honra... "que teve a honra de apertar a mão de V. Exa., e de apreciar o seu cavalheirismo, julga dever preveni-lo que sua mulher e, à vista de toda Lisboa,a amante de um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive numa casa com as janelas verde, chamada o Ramalhete. Este herói que é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivais, onde instalou a mulher de V. Exa. e onde a vai ver todos os dias, ficando às vezes, com escândalo da vizinhança, até de madrugada. Assim, o nome honrado de V. Exa. anda pelas lamas da capital." É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ela diz é incontestavelmente exato... O Sr. Carlos Eduardo da Maia é, pois, publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante dessa Senhora. 
                Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, numa aceitação inteira de todas as responsabilidades:
                  - Não tenho então nada a dizer a V. Exa. senão que estou às suas ordens!... 
                Um fugitiva onda de sangue avivou a palidez morena de castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente: 
                 - Perdão... O Sr. Carlos de Maia sabe tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma solução violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, ler-lhe este papel... A coisa é inteiramente outra. 
                  Carlos recaíra na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada daquela voz ia-se-lhe tornando intolerável. Um confuso terror do que viria desses lábios, que sorriam com uma palidez impertinente, quase fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que saísse daquela sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma torpeza!... 
               O outro passou os dedos no bigode, e prosseguiu, de vagar. arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão: 
               - O meu caso é este, Sr. Carlos de Maia. Há pessoas em lisboa que não me conhecem de certo, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brasil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo por ser falso.  E V. Exa. compreende que eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a mada de marido infeliz, visto que a não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que aquela senhora não é minha mulher. 
           Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da maia. Mas ele conservava uma face muda, impenetrável, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lividez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça como acolhendo placidamente aquela revelação, que tornava outra qualquer palavra entre eles desnecessária e vã. 
                   Mas Castro Gomes escolhera de leve os ombros com uma languida resignação, como quem atribui tudo à malícia dos destinos.  
                  - Sãs as ridículas cenas da vida... O Sr. Carlos da Maia está dai a ver as coisas. É a velha, a clássica história... Há três anos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado de ir ao Brasil, trouxe-a a Lisboa para não vir sozinho. Fomos para o Hotel Central. V. Exa. compreende perfeitamente que eu não fui fazer confidências ao gerente do estabelecimento. Aquela senhora vinha comigo. dormia comigo, portanto, para todos os efeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou enfim um amante ... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes... E, meu Deus! não podemos realmente condená-la muito... Achava-se por acaso revestida duma excelente posição social e dum nome puro, seria mais que humano que seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguém, a declarar que posição e nome eram de empréstimo e ela era apenas "Fulana de tal, amiga..." De resto, sejamos justos, ela não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou à matrona que lhe alugava a casa; nem mesmo, penso eu, a ninguém, a não ser a um pai que lhe quisesse apresentar sua filha, saída do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas, lhe deixei usar o meu nome. Foi por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ela tomou a governante inglesa. As inglesas são tão exigentes!... Aquela, sobretudo, uma rapariga tão séria... Enfim, tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retire solenemente o nome que lhe emprestara; e ela fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren. 
                Carlos ergueu-se, lívido. E com as mãos fincadas nas costas da dadeira tão fortemente, que quase lhe esgaçava o estofo: 
              - Mais nada,  creio eu?
               Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despedia. 
              - Mais nada, disse ele tomando o chapéu e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a V. Exa suspeitas injustas, que aquela senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente ha três anos... Vinha dos braços dum qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injúria, que era uma mulher que eu pagava. 
             Completara com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abria o reposteiro da sala, numa sacudidela brusca. E, diante desta nova rudeza que revelava só mortificação. Castro Gomes foi perfeito; saudou, sorrindo, murmurou:
               - Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pesar de ter feito o conhecimento de V. Exa por um motivo tão desagradável... Tão desagradável para mim. 
            Os seus passos desafogados e leves perderam-se na antecâmara, entre as tapeçarias. Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calçada... 
                  Carlos ficara caído numa cadeira, junto da porta, com a cabeça entre as mãos. E de todas aquelas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe ressoavam em redor, adocicadas  e lentas, só lhe restava o sentimento atordoado de uma coisa muito bela, resplandecendo muito alto, e que caía de repente, se fazia em pedaços na lama, salpicando-o todo de nodoas intoleráveis... Não sofria: era simplesmente um assombro de todo o seu ser perante este fim imundo de um sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens de ouro; de repente uma voz passava, cheia de rir; as duas almas rolavam, batiam num charco; e ele achava-se tendo nos braços uma mulher que não conhecia, e que se chamava Mac-Gren. 

 *           *          *

                Daí a pouco Carlos rodava pela estrada dos Olivais. Já se acendera o gaz. E inquieto, no estreito assento, acendendo novamente cigarrettes que não fumava, sofria já a perturbação daquele encontro difícil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por "minha senhora", se por "minha boa amiga", com uma superior indiferença. E ao mesmo tempo sentia por ela uma compaixão indefinida, que o amolecia. Diante destes seus modos regelados, via-a já toda pálida, a tremer, com olhos cheios de água. E estas lágrimas que apetecera, agora que estava tão perto de as ver correr, enchiam-no só de comoção e de dor. Por fim seria muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre secamente! Poderia não lhe mandar o cheque, - afronta brutal de homem rico. Apesar de embusteira, era mulher, cheia de nervos, cheia de fantasias, e amara-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Era mais simples, era terminante... E depois não a via, não teria de suportar a tortura das explicações e das lágrimas. 
                  Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, refletir um instante, mais calmamente, no silêncio das rodas. O cocheiro não ouviu; o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, à m,aneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aqueles lugares onde tantas vezes passara com o coração em festa, quando a sua paixão estava em flor, uma cólera nova voltava -menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra essa mentira que fora obra dela, e que vinha estragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa mentira que agora odiava, vendo-a como uma coisa material e tangível, de um peso enorme, feia e cor de ferro, esmagando-lhe o coração.
                  Oh! Se não fosse essa coisa pequenina e inolvidável que estava entre eles, como um indestrutível bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão com a mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Mas havia a mentira, a mentira, dita no primeiro dia em que fora à rua de S. Francisco, e que como um fermento podre estragando tudo de aí por diante, doces conversas, silêncios, passeios, sestas no calor da quinta, murmúrios de beijos morrendo entre os cortinados cor de ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquela mentira primeira que ela dissera sorrindo, com os seus tranquilos olhos límpidos... 
               Abafava. Ia descer a vidraça a que faltava a correia, quando a tipoia parou de repente, na estrada solitária... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeça falava ao cocheiro. 
          Caminhando devagar sob as acácias, sentia no sombrio silêncio as pancadas desordenadas do seu coração. subiu os três degraus de pedra, que lhe pareciam já duma casa estranha. Dentro do corredor estava deserto, com a sua lâmpada mourisca alumiando as panóplias de touros... Ali ficou. Melanie, com o cheiro na mão, veio dizer-lhe que a Senhora estava na sala das tapeçarias...  
                     Carlos entrou. 
                     Lá estava ainda de capa, esperando de pé, pálida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lágrimas. E correu para ele, arrebatou-lhe as mãos, sem poder falar, soluçando, tremendo toda. 
            Na sua terrível perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estúpida: 
                    - Não sei porque chora , não sei, não há razão para chorar...
                    Ela pode enfim balbuciar: 
                   - Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia ver-te... Nunca tive coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrível... Mas escuta, não digas nada ainda, perdoa, que eu não tenho culpa! 
                 De novo os soluços a sufocaram. E caiu ao canto do sofá, num choro brusco e nervoso, que a sacudia toda, lhe fazia rolar sobre os ombros os cabelos mal atados. 
                 Carlos ficara diante deles, imóvel. O seu coração parecia parado de surpresa e de dúvida, sem força para desafogar. 
               Ela ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com grande esforço: 
                - Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!... Tu não te vais já embora, senta-te, escuta... 
                   Carlos puxou uma cadeira, lentamente. 
                  - Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me isso!
                  Ele cedeu à suplicação humilde e enternecedora doas seus olhos arrasados de água; e sentou-se ao outro canto do sofá, afastando dela, numa desconsolação infinita. Então, muito baixo, enlouquecida pelo choro, sem o olhar e como num confessionário, Maria começou a falar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grande soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face aflita. 
                  A culpa não fora dela! não fora dela! Ele devia ter perguntado àquele homem que sabia toda a sua vida...  Fora sua mãe... Era horroroso dizê-lo, mas fora por causa dela que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandês... E tinha vivido com ele quatro anos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só ocupada da sua casa, que ele ia casar com ela! Mas morrera na guerra com os alemães, na batalha de Saint-Privat. E ela ficara com Rosa, com a mãe já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao princípio trabalhara... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhara, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! A pobre criança com fome! com fome! Ah, ele não podia perceber o que isto era!... Quase fora por caridade que as tinham repatriado para Paris... E aí conhecera Castro Gomes. Era horrível, mas que havia ela de fazer! Estava perdida... 
                   Lentamente escorregara do sofá, caíra aos pés de Carlos. E ele permanecia imóvel, mudo, com o coração rasgado por angústias diferentes; era uma compaixão trêmula por todas aquelas misérias sofridas, dor de mãe, trabalho procurado, fome, que lhe tornavam confusamente mais querida; e era o horror desse outro homem, o irlandês, que surgia agora, e que lha tornava de repente mais maculada... 
                  Ela continuava falando de Castro Gomes. Vivera três anos com ele, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em sua casa. Ele é que aforçava a andar em ceias, em noitadas... 
                E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!... 
                     - OH não, não me mandes embora! gritou ela prendendo-se a ele ansiosamente, Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não compreendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante só, não volts o rosto, tem pena de mim... 
                    Não! ele não queria olhar. Temia aquelas lágrimas, o rosto cheio de agonia. Já tudo nele começava a oscilar, orgulhosos, despeitos, dignidade, ciúme... E então, sem saber, a seu pesar, as suas mãos apertaram as dela. Ela cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente; e ansiosa implorava do fundo da sua miséria um instante de misericórdia. 
                   - Oh, dize que me perdoas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como dantes, uma só vez! 
                   E eram agora os seus lábios que procuravam os dele. Então a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu ser encheu Carlos de cólera, contra si e contra ela. Sacudiu-a bruscamente e gritou: 
                     - Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Para que foi essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste tu? 
             Largara-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cair sobre ela a sua queixa desesperada:
                  -É a tua mentira que nos separa, a tua horrível  mentira, a tua mentira somente! 
                    Ela ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma palidez de desmaio. 
                - Mas eu queria dizer-to, murmurou muito baixo, muito quebrada diante dele, deixando cair os braços. Eu queria dizer-to... Não te lembras, naquele dia em que tu vieste tarde, quando eu falei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: -"há uma coisa que te quero contar..." Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que havíamos de ir com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras? ... Foi então que me veio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, anos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: "agora, se queres, manda-me embora". Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não resisti... Se tu não falasse em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal falaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além disso adiava aquela horrível confissão! Enfim, nem posso explicar, era como céu que se abria, via-me contigo numa casa nossa... Foi uma tentação! ... E depois era horrível, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te:"não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho..." Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era  tão bom ser assim estimada... Enfim foi um mal, foi um grande mal... E agora aí está, veja-me perdida, tudo acabou!
                  Atirou-se para o chão, como uma criatura vencida e finda, escondendo a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto dela, tinha só a mesma recriminação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços dela lhe respondiam. 
                  - Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivais, quando sabias que tu eras tudo para mim? 
                  Ela ergueu a cabeça fatigada: 
                  - Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse de outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por aí dentro de chapéu na cabeça, a perder a afeição à pequena, a querer pagar as despesas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia: "hoje não, um dia só mais de felicidade, amanhã será..." E assim ia indo! Enfim, nem eu sei, um horror!
                Houve um silêncio. E então Carlos sentiu à porta Niche, que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadelinha correu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhada a um canto; procurava lamber-lhe as mãos, inquieta; depois ficou plantada junto dela, como a guardá-la, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos de azeviche, Carlos que recomeçara a passear sombriamente. 
                Um ai mais longo e mais triste de Maria fê-lo parar. Esteve um momento olhando para aquela dor humilhada... 
                 - Mesmo que tu pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora, nunca mais? Ha essa mentira horrível sempre entre nós a separar-nos!  Não teria um único dia de confiança e de paz...
                - Nunca te menti senão numa coisa, e por amor de ti! disse ela gravemente, do fundo da sua prostração. 
                 - Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia creditar... Como havia de ser, se agora mesmo quase que nem acredito no motivo das tuas lágrimas? 
               Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente secos rebrilharam, revoltados e largos, no mármore da sua palidez. 
                - Que queres dizer? Que estas lágrimas tem outro motivo, estas súplicas são fingidas? Que estas lágrimas tem outro motivo, estas súplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te perder, ter outro homem, agora que estou abandonada? ...
                Ele balbuciou: 
                 - Não, não! não é isso!
                - E eu? exclamou ela, caminhando para ele, dominando-o, magnífica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar nessa grande paixão que me juravas? O que é que tu amas então em mim? Dize lá! Era a mulher de outro, o nome, o requinte do adultério, as toilettes?  Ou era eu própria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti? ... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo... só uma coisa é diferente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior. 
                - Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.
                Num instante Maria estava caída a seus pés, com os braços abertos para ele. 
                - Juro-te pela alma da minha filha, pela alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, até à morte! 
                 Carlos tremia. Todo o seu ser pendia para ela; era um impulso irresistível. Mas outra vez a ideia da mentira passou regeladora. E afastou-se dela levando os punhos à cabeça, num desespero, revoltado contra aquela coisa pequenina e indescritível que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre eles e a sua felicidade divina.
                 Ela ficara ajoelhada, imóvel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois do silêncio estofado da sala, a sua voz ergueu-se, dolente e trêmula: 
                  - Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás embora... Ninguém mais me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não ninguém mais no mundo... Amanhã saio daqui, deixo-te tudo... Hás de me dar tempo para arranjar... Depois, que hei de fazer, vou-me embora! 
                 E não pode mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de choro. 
                 Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para ali caída e abandonada, parecia já uma pobre criatura, arremessada para fora de todo o lar, sozinha a um canto, entre a inclemência do mundo... Então, respeitos  humanos, orgulho, dignidade doméstica, tudo nele foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, ofuscando todas as fragilidades, a sua beleza, a sua dor, a sua alma sublimemente amante. Um delírio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se à sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos: 
                    - Maria, queres casar comigo? 
             ela ergueu a cabeça sem compreender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para fechar dentro deles outra vez, como sua e para sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cair sobre o peito dele, cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos, tonta, num deslumbramento: 
                      - Casar contigo, contigo? Oh Carlos... E viver sempre sempre contigo? ... Oh meu amor, meu amor! e tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa também... Não, não cases comigo, não é possível, não valho nada! Mas se tu queres, por que não?...  Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E hás de ser nosso amigo, meu e dela, que não temos ninguém no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...
                 Empalideceu, escorregando pesadamente entre os braços dele, desmaiada; e os seus longos cabelos desprendidos rojavam o chão, tocados pela luz de tons de ouro. .
*          *           * 
Tu dizes que me perdoas
Mas, esquecer é que não,
Perdão em que não se esquece
Será que é mesmo Perdão?
Nicéas Romeo Zanchett 

sábado, 21 de outubro de 2017

SÃO FREI GIL - Por Eça de Queirós

                  No solar, o velho D. Rui estranhava a nova existência de Gil - que, agora, das suas caminhadas solitárias, sem galgo, sem escudeiro, voltava carregado de ervas, como um aprendiz de herbanário. Mas quando soube que ele andava aprendendo a arte de curar, a sua admiração por aquele filho excelente cresceu, e não duvidou que ele viesse um dia a ter fama, em todo o reino, pelo seu saber maravilhoso; e uma tarde, montando com custo na sua mula, foi ao Mosteiro levar D. Abade a notícia deste novo trabalho a que se lançara o grande espírito do seu doce Gil. 
                   Era no tempo dos figos, e tendo demasiadamente comido desta fruta, o bom Abade fora atacado de um duro mal. Na sua cela, onde recebeu afavelmente o seu vizinho, as relíquias do convento estavam expostas, sobre um pequeno altar, para dar saúde ao bom Abade. 
                  Um frade rezava junto ao vasto leito de carvalho. Outro pisava uma massa dentro dum almofariz, e dois noviços, com ramos e louro, sacudiam as moscas da face venerável, que mal empalidecera. 
                   D. Rui lamentou o bom Abade, e, sentado num escanho aos pés do leito, contou logo como justamente o seu Gil começara agora com o grande desejo de saber a arte de curar aquele e outros males. 
                - Pois mandi-o estudar na França!... - acudiu logo o D. Abade, estendendo a mão fora da roupa, com um gemido. - Não sei que haja mais útil saber. Mas nós, aqui neste Reino, nem uma dor sabemos calmar... Não o digo pelos doutos padres desta casa!... Mas já desde domingo, que foi a merenda, estou aqui em trabalhos... Estamos em grande atraso... Mandai-o estudar na França.
                  E, pregando os olhos nas santas Relíquias, ficou mudo. 
                  Só quando D. Rui lhe beijou o anel da mão, caída sobre a colcha de seda, tornou a voltar o rosto, a murmurar: 
                 - Mandai-o estudar na França. 
                 D. Rui recolheu ao solar melancolicamente. Deus, de certo, pela voz do D. Abade, que sofria cercado de Relíquias, lhe indicava aquele dever de mandar o seu filho à França, para se ilustrar no saber. Mas a ideia de o ver partir e ele já tão velho, cortava o seu coração. 
              Quase desejava que seu filho fosse um moço de espírito simples, contente em caçar, justar as armas no páteo do seu solar. E nem contou a D. Tareja esta visita ao Mosteiro, o conselho penoso que fora escutar. 
                   E era então com mágoa que via agora o seu filho cada dia mais devotado aos livros. Tendo começado a estudar a arte dos Simples e das Drogas, como complemento da sua educação de cavaleiro, ele começava agora a amar esse saber, como o fim supremo da vida. 
                 Como um peregrino que percorre um templo, e a quem a beleza ou raridade duma capela inspira o desejo devoto de percorrer as que além, na sombra, fazem cintilar os seus ouros, este gentil cavaleiro, de cada estreita região do saber em que penetrava, recebia a nobre tentação de invadir outras, que ao longe faziam cintilar a maravilha dos seus segredos. 
                 As secas plantas, com que Mestre Porcalho lhe ensinara a fazer emplastros para curar humores, que lhe tinham dado o desejo de conhecer toda a vasta natureza que cobre a terra, e a estrutura dessa terra, onde se escondem os metais e o fogo; a terra, ela mesma, lhe fizera sentir o desejo de conhecer tudo o que a cerca, os ventos que a sacodem, as nuvens que sobre ela formam um todo de multicor beleza, os astros pequeninos e grandes que sobre ela derramam o seu brilho fulgurante ou meigo. Do homem, de quem o velho Físico lhe explicara os ossos, ele bem depressa quis conhecer a alma, e as leis múltiplas e maravilhosas que a regem... Porque aspirava ele ao bem? Porque sentia uma resistência ao mal? Donde nascia o amor? Porque pensava, e em que parte íntima do homem brotava a fonte imperecível do pensar? Depois era a curiosidade de saber o que o homem, desde tão longas idades criado, tinha feito na terra, e as cidades que fundara, e as grandes guerras que travara, e as leis que criara para se conservar manso e sociável... E, do homem, a sua curiosidade ascendia ao Deus que o criara. Qual era a sua essência, onde habitava, que cuidado tinha ele pela humanidade que criara? - E assim este moço gentil, a quem a barba mal nascera, aspirava a percorrer todas as ciências, a compreender todo o Ser. Mas entre as velhas muralhas daquele solar, naquela quieta aldeia, adormecida sob o olivedo e a vinha, como poderia adquirir todo esse saber, que ocupa, para ser codificado e aclarado, monges de tantos mosteiros, escolares de tantas escolas! Todos os trinta e três livros que formavam a rica livraria do convento Beneditino lhe tinham sido emprestados, por supremo favor, e em todos, confusamente e tumultuosamente, aprendera milagres de Santos, leis visigóticas, batalhas da antiguidade,  receitas de drogas e notícias dos países que estão para o Oriente; mas eram como curtas fendas, num teto de maciças traves, por onde entrevia pontos vivos de luz, aqui e além, e tudo o resto era escuro, e a luz completa estava por trás, sem a alcançar. 
                 Mesmo por vezes lera um grande tomo, de Aristóteles ou de Sêneca - mas sentia que o seu espírito solitário, sem um guia, ia através daquele saber, como um homem perdido de noite numa montanha desconhecida. 
                 A sua alma então, nessa grande sede que não podia ser saciada, porque estava tão longe de toda a fonte, caiu numa melancolia. Abandonou os grossos in-fólios onde já nada novo podia aprender, e não o atraia a companhia de homens que nada lhe podiam ensinar. Só, com um galgo, partia de manhã, penetrava nos campos, procurava a solidão das quebradas e dos vales; e ai, caminhando de vagar, ao comprido dum ribeiro, ou deitado à sombra duma árvore, ele pensava na inutilidade da vida...
                 Aquilo, pois, era viver, esta monótona sequência dos  atos instintivos: acordar, comer, caminhar entre as árvores, voltar à mesa onde as malgas fumegam, e, quando a luz finda, adormecer? Assim vivia qualquer bicho no mato! Mas de todas as ocupações humanas qual era verdadeiramente digna de que o homem nela pusesse a sua alma inteira, e a tornasse o fim do seu esforço na terra? Não de certo vestir as armas , seguir um pendão, rasgar as carnes doutros homens, gritar no estridor das batalhas, para que o senhor rei possua mais um castelo, ou alargue, para além dum rio, as fronteiras do seu reino! Não de certo juntar maravedis, com eles comprar mais terras e mais servos, engrossar rendas, atulhar as arcas de sacos de ouro! Não de certo andar de solar em solar, com plumas no gorro, e um falcão em punho, galanteando as damas, conversando de linhagens, justando dos páteos, e escutando os jograis que cantam no sertão!... 
                  O que então? E o seu espírito recaia naquela ambição vaga que o torturava, a ambição de tudo saber, de se elevar, pela posse dessa ciência, acima dos homens, e exercer essa supremacia toda em favor e bem dos homens. 
                 Queria ter um saber que lhe permitisse fazer as leis mais justas, curar todos os males do corpo, enriquecer as multidões, estabelecer a paz entre os Estados, e guiar todos os seres vivos pela larga estrada do céu. Para tal fim, só para ele valeria a pena viver. E, para o conseguir, não haveria trabalho a que se não sujeitasse, fadiga que não afrontasse. Veria, sem dor, o seu corpo penar, comeria as ervas dos campos, vestiria os trapos mais sujos, serviria nos misteres mais rudes, contanto que a alma se fosse enchendo desse grande saber, cada vez mais alto, mais belo, dominando todas as almas pela abundância de verdade que possuísse, e pela eficácia do bem que espalhasse. Mas esta ambição, como a realizar? Onde, como adquirir esse saber benéfico? E quando o tivesse adquirido, de que modo fazer que ele aproveitasse aos homens , para se tornarem melhores, e serem aliviados dos males da vida? 
                 Seria um grande Físico, que fosse pelo mundo curar os males da carne? Seria um grande teólogo derramando a paz nas almas? E mesmo que melhorasse algumas almas, ou sarasse alguns corpos, quantos ainda por todo o vasto mundo ficariam sem remissão e bem estar? Qual era o meio de fazer o bem simultaneamente a grandes multidões?
                   Assim pensava D. Gil na solidão dos vales. Este moço tão gentil tinha então vinte e dois anos, e era tão belo e airoso, que a gente se voltava nos caminhos, e o ficava a olhar, com doçura. 
                  Os seus longos cabelos, dum louro escuro, caiam em anéis com os dum arcanjo. Nada havia mais doce e luminoso que o olhar dos seus olhos escuros. Um buço, apenas nascente, dava uma sombra de virilidade à sua pele ebúrnea, como a duma Virgem; e no seu andar havia uma graça altiva, como a dum príncipe em plena felicidade. Os seus modos eram tão doces e corteses, que logo prendiam as almas.  
                Nenhuma pessoa, por mais humilde, o saudava, sem que ele gravemente erguesse o seu gorro de fidalgo; e nos caminhos estreitos encontra-se às sebes, para deixar passar os ventos, ainda que fossem mendigos. Ainda que naquela farta e quieta aldeia não havia pobreza, a sua escarcela saía cheia, e voltava sempre vazia. Amava todos os animais, e as crenças faziam-no parar, sorrindo, enternecido. 
                Com esta cordura de monge, tinha todas as prendas dum cavaleiro. Ninguém justava, jogava o tavolado, domava um potro bravo, ergui uma barra de ferro, com mais força e primor. 
                 Não temia nem os homens, por mais fortes, nem as feras por mais bravias, nem os duendes por mais malignos. Mas na casa de seu pai era obediente com uma criança, e era ele quem servia o velho, o ajudava a erguer da sua cadeira, e mesmo lhe penteava os seus cabelos brancos. Um olhar de sua mãe era para ele como um mandamento divino, e com tanta devoção lhe beijava a mão, que outra maior não tinha com a Mãe-do-Céu. 
               Nunca sua alma, branca como a água mais pura, fora toldada pela passagem dum pensamento injusto ou impuro. A justiça  era para ele tão necessária como a luz; e se testemunhava uma injustiça, sofria, como se um guante alheio lhe tivesse batido a face, sentindo-se ofendido na ofensa que via fazer aos outros. Adorava a verdade, logo abaixo da Virgem Maria; e todo o olhar que não fosse franco, toda a palavra que não fosse livre, lhe davam o horror duma coisa suja. 
                Queria que todos os solarengos lhe falassem sem submissão; e, amando todos os homens como iguais, a servidão parecia-lhe uma ofensa ao seu amor. 
                 Assim o senhor D. Gil era nesses anos ainda curtos, uma das almas melhores da cristandade. 
              Um dia, tendo despertado com o cantar das calhandras, e sentindo a alma mais triste, partiu só com um grande lebréu, e levado pelos seus pensamentos, foi dar ao alto duma colina, que era a mais alta naqueles lugares, e se chamava serra do Bruxo. Dali via, mais baixas, a vasta colina onde negrejava o seu solar, a aldeia de Gonfalim, espalhada entre a verdura, o branco Convento dos beneditinos, o rio, luzindo entre as margens altas, e a ondulação dos cabeços, até ao extremo azul; e de pé, envolto no vento largo que soprava, Gil começou a considerar quanto era estreito aquele horizonte, e quanto seria impossível, na verdade, que dentro dele se realizassem sonhos que abrangiam o mundo todo. Que havia ali, naquele círculo de colinas? Os muros do seu solar, um convento de velhos frades, uma aldeia de pobres colonos, e para além, terras bravias, matos, colinas, que o tojo vestia! Como poderia jamais ser ali o homem que desejava, o homem de grande saber, de grande ação? E quando, por um dom divino, assim se tornasse, onde havia ali uma humanidade múltipla e larga, para ele exercer a ação da sua alma? Mas para além havia outras terras, grandes reinos, cidades ricas, grandes escolas, mosteiros de alto saber, e multidões inumeráveis, sobre quem uma alma forte e bem provida podia exercer uma supremacia que valesse a pena conquistar. Se ele deixasse o seu lar estreito! se ele partisse! 
                 Um alvoroço encheu o seu coração, e quase imediatamente sentiu ao lado, entre umas fragas, uma voz moca e fresca que cantava: 
Pelo mundo vou
Aonde chegarei?
E a quem procuro
Onde encontrarei
               E um moço apareceu, ligeiro e magro, pobremente vestido, que trazia uma sacola de mendicante a tiracolo. um forte bordão ao ombro, e duas grandes penas de galo no seu gorro remendado. 
                 Uma alegria, franca e livre, alumiava a sua face magra. Todo ele parecia respirar com a delícia o ar áspero e livre da serra; e os seus olhos refulgiam com grande fulgor risonho. 
                Diante de Gil, parou, batendo com o bastão na rocha.
                - Como se chama esta serra e onde leva este caminho? 
                 Gil tirou o seu gorro com cortesia.
              -  Esta serra não tem nome, e este caminho só leva a outras serras... Para onde ides? 
                O  moço limpou lentamente o suor,que lhe alagava a testa: 
               - Vou procurando terras da França... 
               - Assim para tão longe a pé!
               O moço rio alegremente. 
                É que o senhor rei, quando distribuiu as terras e os solares, esqueceu-se de me dar uma mula, e para jornadear custa bom ouro. Mas as pernas são rígidas e mais rijo o coração. É ele que me leva, neste desejo de ir a França, para entrar nas escolas, e saber o grande saber, e vir a ser Físico-mor no paço dum rei, ou ensinar Decretais num conselho. Na herdade em que nasci só havia um livro, que era o missal da capela. E como em todo o mosteiro há uma côdea de pão para um mendigo, e nos ribeiros não falta água, aqui me vou, com meu cajado, cantando por estes caminhos da terra. 
                 Os seus olhos fulguravam como duas chamas, e do cajado que ele assentara, rindo, sobre uma pedra, chisparam longas faíscas. E continuou: 
                 - Só me falta um companheiro. Moço sois, forte pareceis; na França as mulheres são lindas; nas grandes escolas aprende-se o segredo das coisas; e as guerras não faltam a quem apetece a glória. Vinde também comigo, e seremos dois a cantar. 
                   Gil respondeu gravemente, mostrando Gonfalim e o paço acastelado: 
                   - Acolá fica a casa de meu pai. 
                  Então o moço tirou o seu gorro: 
                  - Rico sois! Ajudai um pobre estudante. 
                   Gil abriu a escarcela, e, corando, tirou uma moeda de prata que pôs na mão do estudante. E, sem saber porque, sentia uma atração para ele, como um desejo estranho de se juntar àquele destino errante. Mas o moço, atirando o cajado para as costas, dando um jeito à sacola, partiu. E de novo cantava: 


Dia e noite caminho, 
Para onde irei?
E o saber que procuro?
Onde encontrarei? 
                  A meio da encosta ainda se voltou, acenou com a mão a Gil, e subitamente desapareceu. No chão, em que os seus pés se tinham pousado, a erva secara toda. 
                      Gil recolheu ao solar, pensativamente. Aquele moço pobre partia, sem temer as misérias do caminho, pronto a esmolar o seu pão pelos mosteiros, só para adquirir, longe, nas grandes escolas, o saber a que aspirava. E ele, rico, que poderia partir, com a bolsa farta, escudeiros e bagagens, hesitava em partir, para satisfazer as justas e nobres ambições do seu espírito! Se Deus lhe pusera na alma aquele ideal elevado, era por acaso para que ele o deixasse morrer insatisfeito e inútil?! Dava-lhe Deus uma luz clara, para ele alumiar os outros, e em vez de a tornar mais viva e clara, tão alto, quanto alta possa ser uma luz da terra, ele deixaria, por timidez e enleio da vontade, que ela esmorecesse entre as abóbadas dum velho solar? Não, de certo! E como, pensando assim, avistasse à beira do caminho um cruzeiro, tirou o seu barrete, e jurou pela cruz que nessa noite falaria a seu pai, e lhe pediria para ir estudar na França. 
                  E foi num caramanchão, no pomar, que ele revelou a D. Rui e a D. Tareja este grande desejo do seu coração. A ambos pedira para o acompanharem ao pomar, que tinha grande nova a dar a quem tanto amava... E sentado num rude banco de pedra, sob um caramanchão, onde se entrelaçavam rosas e madressilvas, tendo numa das mãos presa a mão do seu pai, na outra a da boa dona, lhes disse quanto lhe pesava o passar os anos naquele solar, sem proveito para si, e utilidade para os outros homens, seus irmãos; tinha a ambição da glória, de honrar o seu nome, e de espalhar o bem pelo mundo; mas o serviço das armas, se lhe poderia dar glória, não o atraia porque na guerra não havia senão miséria e mal; e depois de muito cogitar, decidira que o seu desejo se satisfaria indo estudar às escolas da França, para voltar ao reino, como um grande escolar em medicina, que era um saber próprio de nobres. 
                   Apenas um ou dois anos por lá passaria. daria de si novas constantes, e ainda não teriam começado a sentir a longura da separação, já ele estaria de volta, licenciado do grande saber, para espalhar o bem em todo o reino, e ser bendito dos homens. 
                - Isto vos peço, pelas chagas de Cristo, que me não negueis este desejo, que é para bem dos homens,e por Jesus inspirado. 
                 As lágrimas caíam pelas faces dos dois velhos. E elas o seu silêncio bem mostravam quanto julgavam nobre o desejo do seu Gil, Inspirado pelo céu, e difícil de recusar. 
                   Mas dois anos de separação, e eles já velhos, e a França tão longe! 
                  Como se ele já partisse, e ela o quisesse reter, a mãe abraçava o filho e murmurava: 
              - Em tanto mimo criado... E partires só para essas terras! E tão grandes os perigos e as tentações! Nós, sós, sem ti, como viveremos!
                 Mas o velho, mais forte, recalcando a emoção, exclamou: 
                - Tão nobre desejo não pode ser negado. O nosso filho tem altos espíritos... Não é nesta aldeia, neste velho solar, que ele pode ganhar fama e servir o reino. Não seria o amor de pai que, para não sofrer um ano, deixasse aqui neste ermo apagar-se, sem serventia, luz de tamanha promessa. Não te  pese que choremos... Cumpre tu o teu dever de homem bom. Deus te leva. Deus te trará. 
                 Gil murmurou: 
                  - Deus decerto me trará. 
                  Ficaram um instante todos os três abraçados, depois, em silêncio, foram à igreja, onde muito tempo rezaram. 
                Sem outras lágrimas, ainda que com grave melancolia, foram feitos os aprestos da longa jornada. Duas possantes mulas de caminho, uma para Gil, outra para o seu escudeiro Pero, vieram da Feira de Covilhã, com os seus arreios novos. Os alforges de couro foram atulhados de roupas novas; e o avençal de D. Rui reuniu quinhentos maravedis de ouro. O bom Abade dos beneditinos deu cartas de boa acolhida para os conventos de Espanha e de Provença, e um monge, que fizera a jornada, marcou num grande pergaminho o roteiro que, através de Castela e de Leão, levava à cidade de Paris. Na véspera da jornada, a capela do solar e a igreja de Gonfalim estiveram toda a noite iluminadas, com capelães e os solarengos rezando, para que o Senhor guardasse o fidalgo que partia. D. Tareja lançou ao pescoço do filho uma relíquia, um pedaço do manto da Virgem, dentro dum escapulário. Nessa madrugada Gil ouviu missa, e o velho Frei Munio deu a benção a tudo que ele levava, armas, alforges, o grande lebréu e a mula. Pelas horas de matinas, estando todas as aias e serviçais reunidos no páteo, D. Gil apareceu, entre o pai e a mãe, pálido, com o seu grande feltro de jornada, um brial  escuro, e grandes botas de couro cru, onde brilhavam acicates de ouro. 
                   De joelhos, recebeu a benção do pai, longamente esteve fechado nos braços da mãe. Todos os sinos então repicaram. Os solarengos, erguendo os sombreiros, bradaram: "Boa ida, boa volta". E, com os olhos vermelhos, mais pálido que uma cera, o senhor D. Gil, a galope, transpôs a levadiça do solar. 
                  Amparados um ao outro, os dois velhos subiram à torre de atalaia. E quando viram as duas mulas  desaparecer, ao fundo azinhaga, caíram de joelhos nas lages duras,  chorando, murmurando o Padre Nosso. 
                 À entrada da ponte, um velho de cabelos brancos, sobre a sua garnacha negra, deteve D. Gil, que trotava, soluçando. Era mestre Porcalho, que lhe vinha dizer o adeus da partida. O fidalgo e o velho Físico longamente se abraçaram. 
                 - Lede Galeno , murmurava o prático entre as lágrimas mal reprimidas. 
                E quando Gil de novo trotava sobre as lages sonoras da velha ponte romana, ainda o Físico lhe bradou, com a mão descarnada no ar:
                 Lê-de-me sempre Aristóteles!


segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O SUAVE MILAGRE - Por Eça de Queirós

                Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades;  mas  a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre oliveiras e vinhedos, no país de Issachar. 
          Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi,   na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasênios, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jaira, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias da Judeia, e se diante dele refulgia espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog - o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sobre o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples; logo, por toda a campina que verdejava até Ascalom, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar; as crianças, colhendo ramos de anêmonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicômoro, não surgiria uma claridade; e nos barcos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão simples certeza, os ditames antigos. 
               Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas; e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras d'Assur, matara as rezes mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se esticaram na latada airosa, só deixará, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed agachado à sombra da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel. 
         Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galileia, que alimentava as multidões, amedrontava os demônios, emendava todas as desventuras - Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que seria um desses feiticeiros, tão acostumados na Palestina, como Apolônios, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o sutil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egito; e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como  toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novos, com magias mais viçosas de certo, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem,   procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiro ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país d"Asschar. 
                 Os servos apertaram os cinturões de couro, e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre a ponte , vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o lago de Tiberíades resplandeceu diante deles,  transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de porfírio, e de alvos terraços por entre os pomares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas. 
                 Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio até adiante do véu, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essênios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galileia, que como os Essênios ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essênio murmurou que o Rabi atravessara o Oasis de Engaddi, depois se adiantara para além... - Mas onde "além?" - Movendo um ramo de flores rouxas que colhera, o Essênio mostrou as terras de além Jordão, a planície de Moab. Os servos vadiaram o rio, e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egito mirra, especiarias e bálsamos de Gilead; e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela lua nova um Rabi maravilhoso, maior que Davi ou Isaías, arrancara sete demônios do peito duma tecedeira, e que à sua voz, um homem degolado pela salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no lago, num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed descorçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da lei. Encontrara ele por acaso esse Profeta novo da Galileia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada, e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso: 
               - Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistesque existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores... 
            E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados, o furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando; "Raca! Raca!" e todos os anathemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam, e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás das serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia. 
               Por esse tempo, um centurião romano, Públius Septimus, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e o mar. Públius, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra Parthas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Áttica, e gozava, com favor supremo dos deuses, a amizade de Flaccus, legado imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal sutil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sidon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara da Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Séptimus, seguia um momento seguia um momento a ave, torneando até bater morta nas rochas; depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar. 
               Então Séptimus, ouvindo contar, a mercadores de Chorazin, deste rabi admirável, tão potente sobre os espíritos , que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decurias de soldados para que o procurassem pela Galileia, e, por todas as cidade de Decapola, até à costa e até Ascalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira, e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lages de basalto da estrada romana, que desde Cesareia até ao lago corta toda a tetrarchia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas; e as mulheres assustadas, para o amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicômoros. Assim correram a baixa Galileia e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os judeus sonegassem o seu feiticeiro para que romanos não aproveitassem do "superior feitiço",  derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens; e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas sinagogas, e batiam sacrilegamente com os punhos das espadas dos Thebahs, os Santos armários de cedro que continham "Livros Sagrados". Nas cercanias de Hebron arrastaram os solitários pelas barbas para fora das grutas, para lhes arranjar o nome do deserto ou do palmarem que se ocultava o Rabi; e dois mercadores fenícios que vinham de Joppé com uma carga de malobatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dráchmas a cada decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de Iduméa que levam as rezes brancas para o Templo, fugiram espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as más sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Ascalon; não encontraram Jesus; e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes. 
               Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale avistaram sobre um outeiro, um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados brandaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
              - Oh romanos! pois acreditais que na galileia ou Judeia aparecem profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuravam palavras ocas, para arrebatar a esportula dos simples... Sem a permissão dos imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas! 
                Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Septimus, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro ; e todavia, a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas. 
                 Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da área pintada não restava grão ou côdea. Nos estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro , secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal.  E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cosidas sem sal, nutriram aquelas criaturas de Deus na terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento! 
               Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o desejam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas e a Enganim; Septimus, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Septimus. E todos voltavam como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus. 
                 A tarde caia. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pedia à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada: 
                - OH filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por áreas e colinas, desde Chorazin até ao país de Moab. Septimus é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te deixe? jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descera através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota? 
                  A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou: 
                 - Ó mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar! 
                E a mãe, em soluços:
            - Ó meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e nem me apontaria a morada do doce Rabi. Ó filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes encontram. O céu trouxe, o céu levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. 
              Dentre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou: 
                 - Mãe, eu queria ver Jesus... 
                 - E logo, abrindo de vagar a porta e sorrindo, Jesus disse`à criança: 
                 - Aqui estou. 

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A PERFEIÇÃO - Por Eça de Queirós

                  Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada, donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais sutil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que mansa e harmoniosamente rolava sobre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias, que lhe calçavam os pés maciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do Egito. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam os Deuses marinhos. 
               A divina ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes eternas doirando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Num sopro dos Zéfiros curiosos, que brincam e correm por sobre o Arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, tão repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embevecido de calor afável, eram duma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas, voando dos ciprestes aos plátanos, e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia. E nesta inefável paz e beleza imortal, o sutil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração. 
              Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao mastro partido, trambalhara na braveza mugidora das espumas sombrias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e o amara! E durante esses imensos anos, como se arrastara a sua vida, a sua grande e forte vida, que, depois da partida para os muros fatais de Troia, abandonando entre lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu pequenino Telêmaco enfaixado no colo da ama,andara sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos?... Ah! ditosos os Reis mortos, com formosas feridas no branco peito, diante das portas de Troia! Felizes os seus companheiros tragados pela onda amarga! Feliz ele se se as lanças troianas o trespassassem nessa tarde de grande vento e poeira, quando, junto à Faia, defendia dos ultrajes, com a espada sonora, o   corpo morto de Aquiles! Mas não: vivera! - E agora, cada manhã, ao sair sem alegria do trabalhoso leito de Calipso, as Ninfas, servas da Deusa, o banhavam numa água muito pura, o perfumavam de languidas essências, o cobriam com uma túnica sempre nova, ora bordada a sedas, ora bordada de ouro pálido! No entanto, sobre a mesa lustrosa, erguida à porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao sussurro dormente dum arroio diamantino, os açafates e as travessas lavradas transbordavam de bolos, de frutas, de tenras carnes fumegando, de peixes cintilando como tramas de prata. A intendente venerável gelava os vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E ele, sentado num escabelo, estendia as mãos para as iguarias perfeitas, enquanto, sobre um trono de marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a claridade e o aroma do seu corpo imortal, sublimemente serena, com um sorriso taciturno, sem tocar nas comidas humanas, debicava a ambrosia, bebia em goles delgados o néctar transparente e rubro.    Depois, tomando aquele bastão de príncipe-de-povos com que Calipso o presenteara, repercorri sem curiosidade os sábios caminhos da ilha, tão lisos e tratados que nunca as suas sandálias reluzentes  se maculavam de pó, tão penetrados pela imortalidade da Deusa que jamais neles encontrara folha seca, nem flor menos fresca pendendo na haste. Sobre uma rocha se sentava então, contemplando aquele mar que também banhava Itaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava e gemia, até que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e ele recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a Deusa que o desejava!...   
              E durante esses imensos anos, que destino envolvera a sua Itaca, a áspera ilha de sombrias matas? Viviam eles ainda, os seres amados? Sobre a forte colina, dominando a enseada de Reithros e os pinheirais de Neus, ainda se erguia o seu palácio, com os belos pórticos pintados de vermelho roxo? Ao cabo de tão lentos e vazios anos, sem novas, apagada toda a esperança como uma lâmpada, despira a sua Penélope e túnica passageira da viuvez, e passara para os braços fortes doutro esposo forte, que agora manejava suas lanças e vindimava as suas vinhas? E o doce filho Telêmaco? Reinaria ele em Itaca, sentado, com o branco cetro, sobre sobre o mármore alto de Ágora? Ocioso e rondando pelos páteos, baixaria os olhos sob o império duro dum padrasto?  Erraria por cidades alheias mendigando um salário?... Ah! se a sua existência, assim para sempre arrancada da mulher, do filho, tão doce ao seu coração, andasse ao menos empregada em façanhas ilustres! Dez anos antes, também desconhecia a sorte de Itaca, e dos seres preciosos que lá deixara em solidão e fragilidade; mas uma empresa heroica o agitava; e cada manhã a sua fama crescia, como uma árvore num promontório, que enche o céu e todos os homens contemplam. Então era a planície de Troia - e as brancas tendas dos gregos ao longo do mar! Sem cessar, meditava astúcias de guerra; com soberba facúndia discursava na Assembléia dos Reis; rijamente jungia os cavalos empinados ao timão dos carros; de lança alta corria, entre a grita e a pressa, contra os Troianos de altos elmos, que surdiam, em roldão ressoante, das portas Skaias! ...   Oh! e quando ele, Príncipe-de-Povos, encolhido sob farrapos de mendigo com os braços maculados de chagas postiças, coxeando e gemendo, penetrara nos muros da orgulhosa Troia, pelo lado da Faia, para de noite com incomparável ardil e bravura, roubar o Paládio tutelar da cidade! Enquanto, dentro do ventre do Cavalo-de-Pau, na escuridão, no aperto de todos aqueles guerreiros hirtos e cobertos de ferro, calmava a impaciência  dos que sufocavam, e tapava com a mão a boca de Antiklos  bravejando furioso, ao escutar fora na planície os ultrajes e os escárnios troianos, e a todos murmurava: "Cala, cala! que a noite desce e Troia é nossa..." E depois as prodigiosas viagens! O pavoroso Pifemo, ludibriado com uma astúcia que para sempre maravilhará as gerações! As manobras sublimes entre Scila e Caribdes! As Sereias, vogando e cantando em torno do mastro, onde ele esteve amarrado, as rechaçava com mudo dardejar dos olhos mais agudos que dados!   A descida aos infernos, jamais concedida a um mortal!... E agora homem de tão rutilantes feitos jazia numa ilha mole, eternamente preso, sem amor, pelo amor duma Deusa! Como poderia ele fugir, rodeado de mar indomável, sem nave, nem companheiros para mover os remos longos? Os Deuses ditosos certamente esqueciam quem tanto por eles combatera e sempre piedosamente voltara as rezes devidas, mesmo através do fragor e fumaraça das cidadelas derrubadas, mesmo quando a sua proa encalhava em terra agreste!... E ao herói,que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade duma ilha mais languida que uma costa de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma Deusa que, sem cessar, o desejava.
                 Assim gemia o magnífico Ulisses, à beira do mar lustroso... E eis que de repente um sulco de desusado brilho, mais rutilantemente branco que o duma estrela caindo, riscou a rutilância do céu, desde as alturas até à cheirosa mata de tuias e cedros, que assombrava um golfo sereno, a oriente ilha. Com alvoroço bateu o coração do herói. Rasto tão refulgente, na refulgência do dia, só um Deus o podia traçar através do largo Uranos. Um deus, pois, descerá à ilha?
               Um deus descerá, um grande Deus... Era o mensageiro dos Deuses, o leve, eloquente Mercúrio. Calçado com aquelas sandálias que tem duas asas brancas, os cabelos cor de vinho cobertos pelo casco onde batem também duas claras asas, erguendo na mão o Caduceu, ele fendera o Éter, roçara a lisura do mar sossegado, pisara a areia da ilha, onde as suas pegadas ficavam rebrilhando como palmilhas de ouro novo. Apesar de percorrer toda a terra, com os recados inumeráveis dos Deuses, o luminoso mensageiro não conhecia aquela ilha de Ogígia - e admirou, sorrindo, a beleza dos prados de violetas tão doces para o correr e brincar de Ninfas, e o harmonioso faiscar dos regatos por entre os altos e languidos lírios. Uma vinha, sobre esteios de jaspe, carregada de cachos maduros, conduzia, como fresco pórtico salpicado de sol, até à entrada da gruta, toda de rochas polidas, donde pendiam jasmineiros e madressilvas, envolta no sussurrar das abelhas. E logo avistou Calipso, a deusa ditosa, sentada num trono, fiando em roca de ouro, com fuso de ouro, a lã formosa de púrpura marinha. Um aro de esmeraldas prendia os seus cabelos muito anelados e ardentemente louros. Sob a túnica diáfana a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava, como a neve quando a aurora a tinge de rosas nas colinas eternas povoadas de Deuses. E, enquanto torcia o fuso, cantava um trinado e fino canto, como trêmulo fio de cristal vibrando da terra ao céu. Mercúrio pensou: "Linda ilha e linda Ninfa!" 
               Dum lume claro de cedro e tuia, subia, muito direito, um fumo delgado que perfumava toda a ilha. Em roda, sentadas em esteiras, sobre o chão de ágata, as Ninfas, servas da Deusa, dobavam as lãs, bordavam na seda as flores ligeiras, teciam as puras teias em teares de prata. Todas coraram, com o seio a arfar, sentindo a presença do Deus. E sem deter o fuso faiscante, Calipso reconhecera logo o Mensageiro - pois que todos os imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos e os rostos soberanos,mesmo quando habitam retiros remotos que o Éter e o Mar separam. 
              Mercúrio parara, risonho, na sua nudez divina,  exalando o perfume do Olimpo. Então a Deusa ergueu para ele, com composta serenidade, o esplendor largo dos seus olhos verdes:
             - Oh Mercúrio! porque desceste à minha ilha humilde, tu, venerável e querido, que eu nunca vi pisar a terra? Dize o que de mim esperas. Já o meu aberto coração me ordena que te contente, se o teu desejo couber dentro do meu poder e do Fado... Mas entra, repousa, e que eu te sirva, como doce irmã, à mesa da hospitalidade. 
               Tirou da cintura roca, arredou os anéis soltos do cabelo radiante  - e com as suas nacaradas mãos colocou sobre a mesa, que as Ninfas acercaram do lume aromático, o prato transbordando de Ambrosia, e as infusas de cristal onde cintilava o néctar. 
                Mercúrio murmurou: - "Doce é tua hospitalidade, ó Deusa!" Pendurou o Caduceu do fresco ramo dum plátano, estendeu os dedos reluzentes para a travessa de ouro, risonhamente louvou a excelência daquele néctar da ilha. E contentada a alma, encostando a cabeça ao tronco liso  do plátano que cobriu de claridade, começou, com palavras perfeitas e aladas: 
                 - Perguntaste porque descia um Deus à tua morada, oh Deusa! E certamente nenhum imortal percorreria sem motivo, desde o Olimpo até Ogígia, esta deserta imensidade do mar salgado em que se não encontram cidades de homens, nem templos cercados de bosques, nem sequer um pequenino santuário donde suba o aroma do incenso, ou o cheiro das carnes votivas, ou o murmúrio gostoso das preces... Mas foi nosso pai Júpiter, o tempestuoso, que me mandou neste recado. Tu recolheste, e reténs pela força incomensurável da tua doçura, o mais sutil e desgraçado de todos os príncipes que combateram durante dez anos a alta Troia, e depois embarcaram nas naves fundas para voltar à terra da Pátria. Muitos desses conseguiram reentrar nos seus ricos lares, carregados de fama, de despojos, e de histórias excelentes para contar. Ventos inimigos, porém, e um fado mais inexorável, arremessaram a esta tua ilha, enrolado nas suas espumas, o facundo e astuto Ulisses... Ora o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso Júpiter, regulador da ordem, te ordena, ó Deusa, que soltes o magnífico Ulisses dos teus braços claros, e o restitua, com os presentes docemente devidos, à sua Itaca amada, e à sua Penélope, que tece e desfaz a teia ardilosa, cercada dos pretendentes arrogantes, devoradores dos seus gordos bois, sorvedores dos seus frescos vinhos!
                A divina Calipso mordeu levemente o beiço; e sobre a sua face luminosa desceu a sombra das densas pestanas cor de jacinto. Depois, com um harmonioso suspiro, em que ondulou todo o seu peito rebrilhante:     
              - Ah! Deuses grandes, Deuses ditosos! como sois asperamente ciumentos das Deusas, que, sem se esconderem pela espessura dos bosques ou nas pregas escuras dos montes, amam os homens eloquentes e fortes!... Este, que me invejais, rolou às areias da minha ilha, nu, pisado, faminto, preso a uma quilha partida, perseguido por todas as iras, e todas as rajadas, e todos os raios dardejantes de que dispõe o Olimpo. Eu p recolhi, o lavei, o nutri, o amei, o guardei, para que ficasse eternamente ao abrigo das tormentas, da dor e da velhice. E agora Júpiter trovejador, ao cabo de oito anos em que minha doce vida se enroscou em torno desta afeição como a vide ao olmo, determina que eu me separe do companheiro que escolhera para a minha imortalidade! Realmente sois cruéis, ó Deuses, que constantemente aumentais a raça turbulenta dos Semideuses dormindo com as mulheres mortais! E como queres que eu mande Ulisses à sua pátria, se não possuo naves, nem remadores, nem piloto sabedor que o guie através das ilhas? Mas quem pode resistir a Júpiter, que ajunta as nuvens?  Seja! e que Olimpo ria, obedecido. Eu ensinarei o intrépido Ulisses a construir uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...
               Imediatamente, o mensageiro Mercúrio se levantou do escabelo pregado com pregos de ouro, retornou o seu Caduceu, e bebendo uma derradeira taça do néctar excelente da ilha, louvou a obediência da Deusa:
               - Bem farás, ó Calipso! Assim evitas a cólera do pai trovejante. Quem lhe resistirá? A sua Onisciência  dirige a sua Onipotência. E ele sustenta, como cetro, uma árvore que tem por flor a ordem... As suas decisões, clementes ou cruéis, resultam sempre em harmonia. Por isso o seu braço se torna terrífico  aos peitos rebeldes. Pela tua pronta submissão será filha estimada, e gozarás uma imortalidade repassada de sossego, sem intrigas e sem surpresas... 
                 Já as asas impacientes das suas sandálias palpitavam, e seu corpo, com sublime graça, se balançava por sobre as relvas e flores que alcatifavam a entrada da gruta. 
              - De resto - acrescentou - a tua ilha, ó Deusa, fica no caminho das naves ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido os imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha... Acende um facho claro, de noite, nas rocas altas! 
              E rindo, o Mensageiro Divino serenamente se elevou, riscando no Éter um sulco de elegante fulgor que as Ninfas, esquecida a tarefa, seguiam, com frescos lábios entre-abertos e o seio levantado, no desejo daquele imortal formoso. 
              Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira duma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnífico Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com anegra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
                - Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o mar! Os Deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a terra pátria...
                 Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa: 
                - Ó deusa, tu dizes!...
                 Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina: 
               - Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam... Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar, e construíres uma jangada em que embarques... Depois eu proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
               O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na deusa um duro olhar que a desconfiança enegrecia. E erguendo a mão, que tremia toda, com a ansiedade do seu coração: 
                 - Ó Deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada as ondas difíceis, onde mal se mantém fundas naves! Não, Deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra, onde os Deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às Sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras dentre Scilia e Charibdes, e venci Polifeno com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi de certo, ó Deusa, para que agora, na ilha de Ogígia, como passarinho de pouca plumagem, no seu primeiro voo do ninho, caia em armadilha ligeira arranjada com ardis de mel! Não, Deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos Deuses, que não prepararás, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável! 
                 Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente... Então a Deusa clemente riu, com um cantado refulgente riso. E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos espessos cabelos mais negros que a pez: 
                 - Ó maravilhoso Ulisses - disse - tu és bem na verdade o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, Deusa, empreenderia, e o Fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!
                 O divino Ulisses retirou lente e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
                 - Mas jura... Ó Deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onde de leite, a saborosa confiança! 
                Ela ergueu o claro braço ao azul onde os Deuses moram: 
               - Por Gaia, e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Stígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, ó homem, príncipe dosa homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores... 

                O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas: 
                - Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, ó Deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!
                   - Sossega, ó homem sôfrego de males humanos! Os Deuses superiores em sapiência já determinam o teu destino... Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força... Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta. 
                 Era com efeito a hora em que homens mortais e Deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados, e as amoráveis conversas que contenham a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim,que ainda conservava o aroma do corpo de Mercúrio, e diant dele as Ninfas, servas da Deusa, colocaram os bolos, as frutas, as tenras carnes fumegando, os peixes rebrilhantes como tramas de prata. Pousada num trono de ouro puro, a Deusa recebeu da intendente venerável o prato de Ambrosia e a taça de néctar. Ambos estenderam as mãos para as comidas perfeitas da terra e do céu. E logo que e a oferenda abundante à fome e à sede, a ilustre Calipso, encostando a face dos dedos róseos, e considerando pensativamente o herói, soltou estas palavras aladas:
                Ó Ulisses muito sutil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da Pátria... Ah! se conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Itaca, ficarias entre os meus braços, animado, banhando, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem perder a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da fecúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!... Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha áspera, onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as imortais como lâmpadas fumarentas e diante de estrelas puras. 
                  O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros de Troia, disse: 
                Ó deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu será eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem ; e ela, em poucos anos, conhecerá e melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude, e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possues as luminosas certezas. Mas, ó Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congênere! Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu como vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrosia divina! Em oito anos, ó Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu , a forçado meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens; e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu é imortal; e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale numa correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais - "Foi culpa tua, mulher!" - erguendo, em frente à lareira, uma alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários! 
                  Assim o cacundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a Deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu. 
               No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e se espalhava por sobre o mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da ilha se cobriram de sombra...
                 Cedo, apenas Eos entreabria as portas do largo Uranos, a divina Calipso, que revestira uma túnica mais branca que a neve do Pindo, e pregara nos cabelos um véu transparente e azul como Éter ligeiro, saiu da gruta, trazendo ao magnífico Ulisses, já sentado à porta, sob a ramada,diante duma taça de vinho claro. o machado poderoso de seu pai ilustre, todo de bronze, com dois fios, e um rijo cabo de oliveira cortado nas faldas de Olimpo. 
             Limpando rapidamente a dura barba com as costas da mão, o herói arrebatou o machado venerável: 
                - Ó Deusa, ha quantos anos não palpo uma arma ou uma ferramenta, eu, devastador de cidadelas e construtor de naves! 
                A Deusa Sorriu. E, iluminada a lisa face, em palavras aladas: 
            - Ó Ulisses, vencedor de homens, se tu ficasses nesta ilha, eu encomendaria para ti, a Vulcano e às suas forjas do Étna, armas maravilhosas...
                -Que vale armas sem combatentes, ou homens que as admirem? De resto, ó Deusa, já muito batalhei, e a minha glória entre gerações está soberbamente segura. Só aspiro ao macio repouso, vigiando os meus gados, concebendo sábias leis para os meus povos... Sê benévola, ó Deusa, e mostra as árvores fortes que me convém cortar!
                Em silêncio ela caminhou por atalho, florido de altas e radiosas açucenas, que conduzia à ponta da ilha mais cerrada de matas, do lado do Oriente; e atras seguia o intrépido Ulisses, com o luzidio machado ao ombro. As pombas deixavam os ramos dos cedros, ou as concavidades das rochas onde bebiam, para esvoaçarem em torno da deusa num tumulto amoroso. Um aroma mais delicado, quando ela passava, subia das flores abertas, como de incensadores. As relvas que a orla da sua túnica roçava reverdejavam num viço mais fresco. E Ulisses, indiferente aos prestígios da Deusa, impaciente com a serenidade divina do seu andar harmonioso, meditava a jangada, almejava pelo bosque. 
                 Denso escuro o avistou enfim, povoado de carvalhos, de velhíssimas técas, de pinheiros que ramalhavam no alto Éter. Da sua orla descia um areal a que nem concha, nem galho quebrado de coral, nem p´lida flor de cardo marinho, desmanchava a doçura perfeita. E o mar refulgia com um brilho safírico, na quietação da manhã branca e corada. Caminhando dos carvalhos à técas, a Deusa marcou ao tento Ulisses os troncos secos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sobre as águas traidoras. Depois, acariciando o ombro do herói, como outra árvore robusta também votada às águas cruéis, recolheu à sua gruta, onde tomou a roca de ouro, e todo o dia fiou, e todo o dia cantou... 
             Com a alvoraçada e soberba alegria, Ulisses atirou o machado contra o vasto carvalho que gemeu. E em breve toda a ilha retumbava, no fragor da obra sobre-humana. As gaivotas, no silêncio eterno daquelas ribas, bateram o voo em largos bandos, espalhadas e gritando. As fluidas divindades dos ribeiros indolentes, estremecendo num fulgente arrepio, fugiam para entre os canaviais e as raízes dos amieiros. Nesse curto dia o valente Ulisses abateu vinte árvores, robles, pinheiros, técas e choupos - e todas decotou, esquadrou, e alinhou sobre a areia. O seu pescoço e arcado peito fumegavam de suor, quando recolheu pesadamente à gruta, para saciar a rude fome, e beber a cerveja gelada. E nunca ele parecia tão belo à Deusa imortal, que, sobre o leito de peles preciosas, apenas os caminhos se cobriram de sombra, encontrou incansada e pronta a força daqueles braços que tinham abatido vinte troncos! 
               Assim, durante três dias trabalhou o herói. E como arrebatada nessa atividade magnífica que abalava a ilha, a Deusa ajudava Ulisses conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos delicadas as cordas e os pregos de bronze. As Ninfas, por seu mandado, abandonando as tarefas suaves, teciam uma tela forte, para a vela que empurrariam com amor os ventos amáveis. E a intendente venerável já enchia os odres de vinhos robustos, e preparava com generosidade os víveres numerosos para a travessia incerta. No entanto, a jangada crescia, com os troncos bem ligados, e um banco erguido ao meio, donde se empinava o mastro, desbastado num pinheiro, mais redondo e lizo que uma vara de marfim. Cada tarde a deusa, sentada numa rocha à sombra do bosque, contemplava o calafate admirável martelando furiosamente, e cantando, com rija alegria, um canto de remador. E, ligeiras, na ponta dos pés luzidios, por entre o arvoredo, as Ninfas escapando à tarefa, acudiam a espreitar, com desejosos olhos fulgurantes, aquela força solitária, que soberbamente, no areal solitário, ia erguendo uma nave... 
            Enfim no quarto dia, de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas. Depois ajuntou um lastro copioso, com a terra da ilha imortal e as suas pedras polidas. Sem descanso, numa ânsia risonha, amarrou à verga alta a vela cortada pelas Ninfas. Sobre pesados rolos, manobrando a alavanca, rolou a jangada imensa até à espuma da vaga, num esforço sublime, com músculos tão retesos e veias tão inchadas, que ele mesmo parecia feito de troncos e cordas. Uma ponta da jangada arfou, levantada em cadência pela harmoniosa. E o herói,erguendo os braços lustrosos de suor, louvou os Deuses imortais. 
              Então, como a obra findara e a tarde rebrilhava, propicia à partida, a generosa Calipso trouxe Ulisses, através das violetas e das anêmonas, à fresca gruta. Pelas suas divinas mãos o banhou numa concha de nacar, e o perfumou com essências sobrenaturais, e o vestiu com uma túnica formosa de lã bordada, e lançou sobre os seus ombros um manto impenetrável às neblinas do mar, e lhe estendeu sobre a mesa, para ele saciar a fome rude, as comidas mais sãs e mais finas da terra. O herói aceitava os amorosos cuidados, com paciente magnanimidade. A Deusa, de gestos seremos, sorria taciturnamente. 
              Depois ela tomou a mão cabeluda de Ulisses, palpando com gosto os calos que lhe deixara o machado; e pela borda do mar o conduziu à praia, onde a vaga mansamente lambia os troncos da jangada forte. Ambos descansaram sobre uma rocha musgosa. Nunca a ilha resplandecera com uma beleza tão serena, entre um mar tão azul, sob um céu tão macio. Nem a água fresca do Pindo bebida em marcha abrasada, nem o vinho dourado que produzem as colinas de Chio, eram mais doces de sorver do que aquele ar repassado de aromas, composto pelos Deuses para o respirar duma Deusa. A frescura imorredoira das árvores entrava no coração, quase pedia a carícia dos dedos. Todos os rumores, o dos regatos na relva, o das ondas no areal, o das aves nas sombras frondosas, subiam, suave e finamente fundidos, como as harmonias sagradas de um templo distante. O esplendor e a graça das flores retinham os raios pasmados do sol. Tantos eram os frutos nos vergéis, e as espigas nas messes, que a ilha parecia ceder, afundada no mar, sob o peso da sua abundância.
                 Então a Deusa, ao lado do herói, levemente suspirou, e murmurou num sorriso alado:
              -Oh magnífico Ulisses, tu certamente partes! O desejo te leva de rever a mortal Penélope, e o teu doce Telêmaco, que deixaste no colo da ama quando a Europa correu contra a Ásia, e agora já sustenta na mão uma lança temida. Sempre dum amor antigo, com raízes fundas, brotará mais tarde uma flor, mesmo triste. Mas dize! Se em Itaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, ó homem prudente, esta doçura, esta abundância e beleza imortal? 
               O herói, ao lado da Deusa, estendeu o braço poderoso, como na Assembléia dos Reis, diante dos muros de Troia, quando plantava nas almas a verdade persuasiva: 
              - Ó Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem meu filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, ó Deusa, muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, ó Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, ó Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostraste estes prados perpétuos: - e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacavelmente, o seu voo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da grutas para não escutar o murmúrio sempre lânguido desses arroios sempre transparentes! Considera, ó Deusa, que na tua ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidores. Ó Deusa, ha oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho,o esforço, a luta e o sofrimento. Ó Deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejado sob o fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre sua muleta, mendigando à porta das vilas. Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura. Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe. Ó Deusa imortal, eu morro com saudades da morte! 
               Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a Deusa escutara, com um sorriso serenamente divino, o furioso queixume do herói cativo... No entanto, já pelas colinas as Ninfas, servas da Deusa, desciam, trazendo à cabeça, e amarando-os com o braço redondo, os jarros de vinho, os sacos de couro, que a intendente venerável mandava para abastecer a jangada. Silenciosamente o heróis lançou uma tábua desde a areia até ao bordo de altos toros. E enquanto sobre ela as Ninfas passavam, ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios, Ulisses, atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos excelentes, todas as Ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal em torno da Deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras do herói sobre o dorso das águas...Então uma cólera lampejou nos olhos de Ulisses,. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços: 
               - Ó Deusa, pensas tu na verdade que nada falta para que eu largue a vela e navegue? Ode estão os ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hospede magnífico da tua ilha, da tua gruta, do teu leito... Sempre os Deuses imortais determinaram que aos hospedes, no momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! Onde estão eles, ó Deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da terra e lei do céu? 
                   A Deusa sorriu com sublime paciência. E com palavras aladas, que fugiam na aragem: 
               - Ó Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens! E também o mais desconfiado, pois que supões que uma Deusa negaria os presentes devidos àquele que amou... Sossega, ó sutil herói... Os ricos presentes não tardam, largos e rebrilhantes. 
               E certamente, pela colina suave, outras Ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnífico Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores... E, enquanto elas passavam sobre a tábua rangente, o herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrados, os escudos cravejados de pedras...
                 Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira Ninfa sustentava no ombro, que Ulisses deteve a Ninfa, arrebatou o vaso, e sopesou, o mirou, e gritou, com soberbo riso estridente: 
                   - Na verdade, este ouro é bom! 
                 Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente Herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco dum roble, e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Masentão recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia, e pousou um beijo sereno na fronte da Deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto: 
                 Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos... 
                Ulisses recuou, com um brado magnífico: 
                - Ó Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição! 
                 E, através da vaga, fugiu, trepou sofregadamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!